Muitos, ao longo desses dois mil anos de catolicismo, superaram,
mediante a graça de Cristo, todas as más inclinações da carne,
chamadas pela doutrina de concupiscência, todas as provações e
tentações do mundo e do diabo, por meio dos Sacramentos, da oração,
da penitência e das boas obras. Tais santos(as) tinham suas
esperanças fixadas como âncoras ao Céu e, nesta vida, abraçaram
suas cruzes com tanto amor que todo sofrimento e mesmo a própria
morte lhes pareciam deleite quando comparadas à glória celeste que
lhes aguardavam. Assim, vemos nas Escrituras São Paulo declarar que
seu “viver é Cristo e o morrer é lucro”, ou, Santo Inácio de
Antioquia, bispo católico do primeiro século, afirmando que ao fim
de sua jornada não havia em si joio (e, ao que nos parece: nem medo
de leões famintos), ao declarar-se “o trigo de Cristo pronto para
ser triturado pelos dentes dos leões”; de maneira semelhante,
frente à morte, aos tenros 24 anos de idade, Santa Teresinha de
Lisieux era quem confortava as irmãs com um singelo sorriso em meio
a dores atrozes: ”Não morro, entro na vida”.
Em nossas duas reflexões anteriores estudamos algumas
características desta pátria celeste pela qual os santos suspiram,
dispostos a perder a presente vida e todos os seus prazeres sem
hesitar. Hoje, peço a Nosso Senhor que nos conceda encontrar,
adentrar e explorar um magnífico castelo. Digamos que os dois
artigos anteriores foram teóricos e este seja o início de uma
prática que, sugiro, seja exercitada com “determinada
determinação” (como diria Santa Teresa) a partir desta Quaresma e
até nosso último suspiro sobre a terra.
Teresa D'Ávila, monja, reformadora do Carmelo, santa e doutora da
Igreja, viveu no século XVI, mas deixou para a Igreja obras que
parecem escritas pelo próprio Senhor pois transcendem os tempos,
permanecendo atuais em quaisquer épocas em que forem lidas.
Recomendo a leitura de seu “Caminho de perfeição” como primeiro
livro de sua obra a ser lido, facilitará o entendimento dos demais.
No entanto, hoje, nossa reflexão será orientada por seu “Castelo
interior ou moradas”.
A fim de auxiliar a caminhada espiritual dos fiéis, a monja
espanhola descreve um impressionante castelo, dividido em sete
compartimentos, sendo o sétimo compartimento, ou, sétima morada, o
lugar onde o próprio Deus habita do mesmo modo que habita o Céu.
Diferentemente da pátria celeste que é, como já vimos, um outro
lugar, portanto fora de nosso alcance enquanto vivemos neste mundo,
este castelo é acessível a qualquer um e deve ser conhecido e
desbravado por todos. Trata-se de um lugar eterno onde quanto mais
avançamos em suas moradas, mais belo e capaz de nos satisfazer ele
se nos apresenta.
Este castelo é o que possuímos de eterno, é o que nos torna imagem
e semelhança do Criador e é onde, no seu estado mais íntimo, a
sétima morada, conforme já descrito, o próprio Criador se
encontra. Todos que queiram e se esforcem podem nele adentrar e
ninguém, por mais poderoso, rico ou influente que seja, pode
impedir-te de fazê-lo, pois ainda que preso, mendigo ou indigente,
no recolhimento e no silêncio de onde brota uma oração sincera e
confiante, que é a própria porta do castelo, segundo a santa, você
pode adentrá-lo. Este castelo nos faz ricos. Nos torna mais ricos na
medida em que, mortificando os sentidos, carregando com amor nossas
cruzes e vivendo na oração e nos sacramentos, avançamos e nos
aprofundamos em suas moradas.
O mundo moderno é tão corrido quanto vazio. Praticamente não há,
na atualidade, quem se proponha a viver ao menos o princípio básico
da filosofia grega: “conhece-te a ti mesmo”. Não dá tempo! Ora
as preocupações, ora os prazeres ou mesmo a preguiça, consomem
nosso cérebro, e a triste notícia é que caberia a este órgão
estabelecer contato entre nó e o castelo, mas o cérebro não poderá
fazê-lo se nossos sentidos estiverem gordos de prazeres, ou, na
busca insaciável por eles, ou ainda, atormentados por temores,
preocupações e curiosidades vãs. Seria como se um pássaro,
almejando o cume de um monte verdejante, onde encontraria plena
satisfação, se visse acorrentado a bolas de chumbo que lhes
fixassem as patas no lamaçal da planície, sem jamais poder alçar
voo. E não se espantem com a constatação de que assim vive a
esmagadora maioria das pessoas; e, o que é pior, neste mesmo estado,
também morrem: não descobrindo e nem explorando o castelo interior
e, por esta mesma razão, após a morte, não são capazes de
estabelecer este castelo na pátria celeste, onde tudo será elevado
à máxima glória; onde a plenitude alcançada por nosso ser nos
fará notar, com clareza, o que agora apenas conjecturamos: que todos
os prazeres dessa terra são um nada quando vistos de cima!
Ao concluir esta modesta reflexão, penso que tenha ficado claro que
este castelo é o maior dom que possuímos nesta terra. É ele que
nos faz viver. Trata-se de nossa alma! Devemos explorá-la, adorná-la
e alimentá-la com orações, penitências, boas obras e uma vida
pura e santa. Devemos policiar nossos pensamentos, palavras e atos
para que nosso encontro com o Senhor seja cada dia, ainda nesta vida,
mais profundo, mesmo sabendo que são raros os santos que atingem
esta sétima morada (os que o fazem, por exclusiva concessão divina,
caminham neste mundo como se já estivessem no próprio Céu),
esforcemo-nos por progredir de morada em morada (de renúncia em
renúncia), até onde o Senhor nos conceder. Vigiar e orar é ordem
dEle e não devemos esmorecer se acaso não vemos ninguém a fazê-lo,
pois, foi este mesmo Senhor quem também nos ensinou ser estreita a
porta da salvação e raros os que por ela passam. Em contrapartida,
há uma larga porta da qual devemos sempre desconfiar: cômoda, sem
cruz, inúmeros caminhos levam a ela (muitos enganados pela mentira
clássica de que “todos os caminhos levam a Deus”), os que
trilham esses caminhos, ainda que possuam o castelo e, dentro dele,
em sua morada mais íntima, encontre-se o preciosíssimo tesouro, no
entanto, porque não estão dispostos a renegarem a si mesmos,
tomando a cruz e seguindo os passos do Mestre, vivem e morrem na
absoluta miséria e indigência espiritual. Espero, aqui, estar
refletindo com milionários…
Santa Quaresma a todos!
Jeansley de Sousa
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